"DON JUAN" E AS MARIAS DO CAMPO
Uma Alemã observa as tradições aldeã
num tempo de transição

de Barbara Seuffert 

Tradução de Dra. Célia Löffers Jorge, Hamburgo / Bebedouro

Os caçadores livres          [deutsch]

É Outubro. As vindimas acabaram. Descansa a faina do campo. O tempo dos casamentos e das romarias também já lá vai. No Café do César não se passa nada. Os emigrantes - portadores de tanta vida à aldeia e a quem os habitantes ouvem, boquiabertos porque, pelos vistos, conseguiram já chegar tão longe: têm dois carros e mais o casarão, aqui, com todo o conforto e os equipamentos mais modernos! Respeitinho! Mas não queremos trocar com eles; a começar pelas saudades, - já todos partiram. Já não acontece nada. A aldeia cai num sono profundo.
Os homens andam por alí, sentados, sonhadores, a olhar para as suas chávenas de café. Quando for tempo de matança e o chouriço posto ao fumeiro, quando o alambique zumbir ....

Há quem diga que cachaça é água,
Cachaça não é água, não.
A cachaça vem do alambique,
A água vem do ribeirão.

Ah, quando o alambique zumbir .... . Mas ainda falta muito. Estamos em Outobro. E, daqui, a dias vamo-nos divertir pois nós, os homems, vamos à caça.

Sou um livre caçador
Minha devesa é sem fim
Até ao fim da charneca
Pertence-me a caça, a mim.
Até ao fim da charneca
Todas as peças são minhas
Raposa, lebres, veados
E as selvagens galinhas.

Como, o que vão caçar? Nunca vimos por aqui veados. Também não há javalis? Bem, então restam as raposas, as lebres e as galinholas.
Será que os homems vão apanhar desses exemplares?
Provavelmente, só um coelho ou uma toupeira ou um rato do campo. Digo "provavelmente" porque de certeza que os ditos fogem logo que ouvirem os caçadores da aldeia. É que já ao longe se ouvem, nem é preciso ser uma rata arrebitada, basta ser-se a toupeira ensonada.
Os homens agarraram, portanto, nas suas caçadeiras, despediram-se da mulher e dos filhos - nunca se sabe! - puseram as armas de fogo ao ombro, polidas durante dias, beberam mais um trago, é que em Outubro o tempo já arrefeceu e até podem arranjar alguma, é melhor prevenir e beber um copito de aguardente, ajuda a visar melhor quando a caça abundante lhes aparecer à frente a pedir para levar um tiro.
Já se juntaram todos? Não, ainda falta o Orlando, foi levar o seu velho cão a casa , o fiel animal segue-o a par e passo e não está treinado para a caça. Mas que significa "treinado"? Tais expressões estão completamente deslocadas, o que é isso de "estar treinado para a caça"? É melhor deixarmos estas ideias e critérios em casa, juntos com o cão do Orlando.
Vamos lá embora!
Dezoito homens com armas e trinta e quatro cãezitos alegres e barulhentos vão à caça. Os Dons Joões e Dons Manuéis e Dons Fernandos riem e atiram observações jocosas uns aos outros pois estão todos excitados, por fim vão poder dar uns tirinhos. O eco soa tão bem nos pinhais. E desde há semanas que não podem disparar, não tem havido ocasião nem razão para disparar um foguete que seja, um destes belos foguetes que são a expressão da sua masculinidade e toda a sua alegria.
A antecipação do que os espera durante a caçada e dos fabulosos estampidos faz-lhes brilhar os olhos e desenferruja-lhes a língua. Arreliam-se uns aos outros: "Olha lá, o que é que achas que te sai hoje pela frente? Uma porca-espinha, p'ra condizer contigo ... . lembras-te do ano passado .... ." E sacodem-se de riso mas nós nunca chegamos a saber o que aconteceu no ano passado. Imaginamos que talvez o José tenha descarregado chumbo no batedor, assim, sem querer, ou talvez tenha errado o alvo, mas que alvo? Ou talvez a sua espingarda não tivesse disparado chegada a ocasião .... .
De certeza que foi tudo inofensivo, a nossa imaginação é muito mais fértil do que a realidade destes homens rudes, que entram pelo pinhal sem temor.
Ouvimo-los rir e atravessar os campos, barulhentos, em comparação com eles uma turma de alunos em dia de excursão é como uma associação de surdos-mudos muitíssimo bem educados. E os cãezinhos acompanham com latidos e sobrepõem-se ao resto.
E, depois, o pinhal engole-os.

Não deveríamos agora estar em cuidados, com o perigo a rondar e com os temerários caçadores ameaçados no pinhal sombrio? Que fazem as esposas entretanto? Rezam? Aquecem panelas de água para preparar a caça para quando os maridos regressarem vitoriosos? Água quente dá sempre jeito pois se não houver presas arrastadas podem os cavaleiros tomar um belo banho refrescante. Esperam as esposas ao portão, ansiosas e inquietas?
Ah, não fazem nada. Pelo menos, nada de especial, nada mais do que fazem normalmente. Conversam, dão comida ao gado, vão buscar couves ao quintal, as imprescindíveis folhinhas tenras para a sopa, as maiores para as galinhas e coelhos e o resto para os porcos, - e começam, como todos os dias, a cozinhar. Esta é uma actividade que as ocupa.
Talvez, lá no fundo, estejam contentes pelo pai extremoso e bom marido não estar hoje em casa mais sim no sítio onde pertence: entre os da sua raça. O seu lugar é entre homens, onde se diverte.

Regressam do pinhal ao fim da tarde. É verdade, de vez em quando ouvimos um tiro e, por vezes, o eco. Desta vez não saem do pinhal em grupo, separam-se antes e seguem por caminhos diferentes.
Acola, à beira do pinhal, aparece o nosso vizinho Manuel.
Regressa, feliz, ao lar!
A filha, o neto pequeno, quatro cães a ladrar, um pouco mais devagar a mulher, e, por fim, nós, vamos ao seu encontro. O livre caçador regressa a casa da caçada. Sobrevieu, são e salvo, ao perigosíssimo dia. O cinto com os cartuxos à volta das ancas decerto que vem vazio, a espingarda parece vir negra do fumo. Deve vir esgotado depois de um dia assim difícil!
Partilhamos a alegria deles e perguntamos-lhe o que caçou.
Ele responde: "Nada."
Nada.
Mas o modo como o diz!
Não pensam que é um homem abatido que sai do pinhal, um falhado, um caçador infeliz sem sucesso nem presa, todo envergonhado. Não, não, quem assim pensar não entende as caçadas portuguesas.
Este homem não tem nada para apresentar do ponto de vista de coelhos, ratos do campo ou toupeiras mas é um homem a valer e valente, ainda por cima.
Passou um dia maravilhoso nos pinhais com os seus semelhante, já sem falar do ar puro. Disparou com barulho, tão alto que até as pinhas caíram. Nos intervalos, bebeu umas belas pingas e, agora, está de volta.
Será que isto não é "nada"?