Barbara Seuffert, "Don Juan"
e as Marias do campo.
Uma alemã observa as tradições
aldeãs num tempo de transição
Elógio pela Profª Rosinda de Oliveira, Mamarrosa-Penedos (Extracto) [deutsch]
(Tradução de Dra. Célia Loeffers Jorge, Hamburgo / Bebedouro
ed. Dezembro de 2001, reg. ISBN 3-9806389-301
Título alemão: "Der Portugiese ist der beste Liebhaber"
oder Mein Casanova ist blau, Guestrow/Mecklenburg Alemanha de 1998, Editora
Luazul, Guestrow Alemanha // P 3840-301 Ouca-Carregosa Portugal, Tel. 234 79
58 03, Fax 234 79 58 04, Internet www.luazul.com)
É para mim uma grande honra e enorme satisfação
poder dizer alguma coisa sobre este livro da escritora Bárbara Seuffert,
intitulado "´D.Juan` e as Marias do campo".
Mas antes, seja-me permitido também deixar aqui, embora que superficialmente,
alguns dados sobre a própria escritora.
Bárbara Seuffert nasceu na Alemanha, em Estétin (Stettin), numa
zona hoje pertencente à Polónia ..., sofreu os horrores da guerra
e as afrontas de idelogias extremistas, tendo sido, por isso, desde criança,
obrigada a deslocações de lado para lado e a refugiar-se várias
vezes. Basta dizer que na sua aprendizagem passou por 18 escolas. Foi professora
de língua alemã e Teologia no Ensino Secundário pré-universitário
e foi uma terrível doença que a obrigou a interromper a sua carreira
pedagógica, atirando-a para um hospital onde permaneceu internada bastante
tempo. [...] Aí, Bárbara conhece uma senhora de Vagos, companheira
de desdita. ... que ... entusiasma Bárbara a visitár o país
dos portugueses .... Assim chega esta senhora a Vagos em 1984, mas é
principalmente na Carregosa que fica deslumbrada com o que encontra. Diz ela
que era tal qual a vida rural que em criança vivera em casa dos avós,
numa parte da Alemanha que agora está integrada na Polónia...
Daí até à paixão por este sítio que considera
seu, foi um pequeno passo... Tinha vindo apenas de visita, mas já não
pensa em regressar, ela que aqui conheceu o termo e o significado da palavra
saudade... Tudo a entusiasma, tudo a maravilha, tudo ela quer registrar. E à
sua vasta obra sobre vicissitudes e problemas sofridos na Alemanha e que ela
sempre retratou em forma de conto, juntam-se assim mais 4 livrinhos sobre coisas
bem portuguesas, saindo o primeiro desta colecção, em 1987, com
o nome de "Sonhos azuis".
A linguagem de Bárbara
Falar da escrita de Bárbara, é falar
de uma linguagem a correr pelas folhas do papel como as águas claras
dos ribeiros que noutros tempos, atravessando as nossas aldeias, deslizavam
a rir e a cantar, entoando com os seixos e os salgueirais, singelas trovas de
amor... As personagens nascem das linhas, erguem-se, meneiam-se, com o à-vontade
da sua singela espontaneidade e vão-nos acordando e metendo na conversa
para assim, sem darmos por isso, irmos paulatinamente aprendendo a terra, amando
as gentes, conhecendo os sonhos e aspirando o caminho humilde das Alturas...
E isto pela mão de uma pessoa estrangeira. E que vem, entusiasmada por
uma longa conversa, na Alemanha, com uma amiga portuguesa. Vem passar férias.
Num misto de curiosidade e até de um pouco de aventura e também
por que não ... a seara é grande, o Reino aí está
- é o mundo inteiro.
Chega.- E é um universo novo, de sons, de usos, de costumes, de vidas.
E, perante o fascínio do momento - a mulher - Bárbara Seuffert
- que meneia e domina como poucos, os segredos das palavras - ela vive, pensa,
apreende, sente, reage... A sua vida, a vida das palavras está ali...
E, decerto, é num ápice que este livrinho vai tomando forma.
Nele tudo acontece em turbilhão e nele tudo podemos auscultar:
Como se apercebe o sussurrar das coisas, a intimidade entre vizinhos e conhecidos,
a lufa - lufa do dia a dia dos que iam para as terras de manhã ao sol-pôr
e, ao mesmo tempo, o parar da vida, ou melhor a modorra que envolve a avó
São ou a avó Luz que trata do trasorelho e tantas outras e outros
em que só os pequenos nadas vão fazendo a história do dia
a dia.
A missa católica numa aldeia (decerto Carregosa) é vista por uma
pessoa estrangeira e de outro culto, o protestante. ... Todos os pormenores
são observados e registados minuciosamente e fixamos que a nossa missa
é apanhada pela caneta deste senhora protestante. Nota-se que acha o
cerimonial muito curto - quando nós aqui, na grande maioria o achamos
tão comprido! Os cantos, refere, sem segura base cultural, mas enérgicos,
a plenos pulmões e de coração puro (Expressão usada).
E nós somos levados a reflectir sobre estas impressões de uma
pessoa estranha a este nosso culto católico. Tradicional, às vezes
quase que improvisado, sem se aprofundar. Nota-se que são observações
de uma pessoa acostumada a um culto vivido porque bem questionado nos seus fundamentos
e, ao mesmo tempo numa assembleia muito mais culta e interessada nas verdades
da fé. Acha o nosso culto muito aberto, externo e movimentado, mas também
vai dizendo que aqui a igreja evangélica é muito fechada. Admira-se
com a maneira espontânea, amiga e cordial como é aceite numa comunidade
católica e como partilham com ela a mesma fé que, afinal, pouco
difere nos seus fundamentos e na sua raiz: Jesus Cristo.
Se por um lado deixa transparecer que ao nosso culto católico falta interioridade
e formação de base, por outro lado, maravilha-se com este desprendimento,
abertura e alegria de todos, nesta celebração dominicial. ...
Nota-se o esforço da autora para se integrar neste meio agrícola
que tanto acha parecido com o da sua infância, em casa dos avòs.
Por isso, é grande o seu entusiasmo quando, com o ajuda do canto comum
e colectivo, se começa a sentir integrada na aldeia dos estrangeiros
portugueses. E isto em parte pelos cânticos do culto católico,
não obstante se tratar de uma alta responsável do culto protestante.
Minhas Senhoras e meus Senhores: Estamos
perante uma linguagem muito fluente, mas singela e aberta, em que os directos
se misturam com os indirectos em observações, apartes, reflexões
e várias falas aligeiradas, mas sempre tão corredias e naturais
que dir-se-ia nos irem levando mansamente, até uns bons anos atrás,
aqui pelas nossas aldeias do interior da Beira Litoral. Ou se assemelham a um
espelho por onde se vão mirando os caminhos poeirentos, as preocupações
quotidianos dos aldeões, a azáfama da vida das nossas mulheres
casadas e os momentos de escape para os maridos que no Café discutem
negócios, trabalhos, planos, bola e outras tantas miudezas de ocasião.
Atravessa todo o livro, uma lufada de ar novo e fresco, meigo e bonacheirão,
embora com um certo sabor nórdico que lhe agudiza os meandros das muitas
e variadas observações.
*
[...] Como todos cantam, dançam desprendidamente, mas em
especial, como comem e bebem, bebem. E a autora repete mesmo as formas verbais,
decerto, para melhor nos convencer da verdade e intensidade da acção,
mas também, supomos, para demonstrar a sua admiração por
hábitos tão diferentas dos do seu país de origem. Vale
a pena lermos mesmo as suas palavras. Dançavam, dançavam, comiam,
comiam, bebiam, bebiam, mas também rezavam, rezavam.
"Dançavam 4 horas inteiras sem descanso, sem mostrar sinal de fraqueza,
sem brecas, males de estômago ou suores. Esta gente! " - são
palavras suas. - " Quando comiam, comiam. Muito, com calma, com gosto.
Simplesmente. Quando bebiam, bebiam, mas a sério- Quando rezavam, rezavam
com devoção. Quando dançavam, dançavam!" Pag.
62
E, no caso das comidas à moda portuguesa, mais concretamente à
moda rural, aldeã, a descrição dos preparativos para uma
festa, uma boda, são de tal maneira vivos, explicativos e chamativos,
que nos mostram mesmo o descascar dos alhos, das cebolas, os picadinhos, os
temperos, os avinhados – tudo tão delicademente mostrado, com palavras
certas, aptas, abertas, vivas, que todos conseguimos visualizar a carne às
camadas com os temperos nas frigideiras pretas ou vermelhas - metidas no forno
já bem quente, com as vides e as achas grossas
*
Linguagem laivada de impressionismo onde
os sons, as cores, os cheiros, os paladares e o tacto se misturam nas linhas
de uma escrita em que a realidade está sempre presente, embora, às
vezes com uma ingenuidade quase chocante.
"Cheirava a terra, a esta terra fértil. Assim cheira o jardim depois
de uma chuva de Maio. Aqui se misturam, ainda, o perfume a resina de um pinhal
próximo e o cheiro a eucalipto das árvores altas da beira do caminho.
Era um cheiro divino e, no entanto, tão terreno." pag. 86
[...] nada escapa; tudo está neste livrinho.
*
Narrativa com uma narradora sempre tão
presente em todos os pormenores, que essa sua presença abarca toda a
acção numa tão viva e constante participação
que, marcando a do princípio ao fim, dela arranca todo o manancial vivificador
que faz desta obra um espelho da sua autora e ainda das muitas personagens que
por ela passam e se vão demarcando.
Os ajuntamentos das pessoas, os desafios de futebol em campos improvisados e
os fenomenais convívios_com sardinhas, cerveja, bifanas, tudo à
descrição_são também delícias para a caneta
de Bárbara. ... Impossível captar todas aquelas pequenas coisas
que nos passam despercebidas, mas que para esta senhora alemã adquirem
estatuto de intervenção forte e quase mágica pois além
de nos fazerem viver ambientes e paisagens humanas inesquecíveis, o calor
e o vigor da narrativa não deixam ninguém indiferente.
*
Deste pequeno livro desprende-se um poder
imenso que nos abana, ao mesmo tempo que uma nota de bonomia e ternura acompanha
todo o discurso da autora. Pedras, bichos, homens, enfim, toda a natureza está
na caneta de Bárbara que constantamente a sacode e mete para a cena sempre
viva e tendadoramente apetecível. São coisinhas insignificantes,
que a nós, espíritos vulgares e tantas vezes cheios de afazeres
balofos e medíocres, com supérfluos e vazios objectivos – nunca
reparámos, nunca seríamos capazes de lhes dar vida, movimento,
luz e cor.
É uma sacudidela no rotineiro e é também para nós
uma pertinente chamada de atenção para tanto do que temos e que
não sabemos devidamente valorizar. [...] Afinal é uma pessoa estrangeira
que nos vem ajudar e abrir os olhos para aquilo que possuimos de valor – um
património tradicional, rico de cultura e sociabilização
"sui géneris".
*
Para Bárbara tudo é novidade,
tudo merece o flash da sua objectiva. E ela é extraordinariamente meticulosa
e objectiva na sua observação, a ponto de nada, mas nada lhe escapar.
Por exemplo, o que ela regista sobre os tais desafios de futebol no meio dos
matos e pinhais; ... Mas são também os velhos e velhas, as crianças,
as mulheres e homens na luta diária – nada nem ninguém foge à
sensibilidade desta inigualável observadora.
Todas as histórias deste livrinho – relíquia são deveras
interessantes e curiosas, mas a penúltima tem um sabor muito especial,
dado que retrata bem muitas das situações aqui vividas, principalmente
a partir dos meados do século passado, com a emigração.
A autora intitulou este conto de "Rosa dramática". ... Mas
o caricato de certas situações é explorado de tal forma,
são pinceladas tais cenas que soam como instantes únicos em únicas
ocasiões da vida... Fantástico! E a linguagem, como já
acentuámos, tão directa, tão viva, tão real! Parece-nos
mesmo estarmos numa plateia a olhar o desenrolar da peça-num palco qualquer
da vida!....
O livro finaliza com o conto "Os
caçadores livres". Apenas de relance para também
terminarmos estas considerações, fiquemo-nos com estas palavras
sobre coisas tão portuguesas – postas na boca de Bárbara... "Quando
for tempo de matança e o chouriço posto ao fumeiro, quando o alambique
zumbir." ...
E quanto ao título "D. Juan e as Marias
de Portugal?!..."
Bem parece-me que Bárbara não conseguiu encontrar por estes lados,
nenhum típico D.Juan, mas sim mulheres e homens portugueses que crescem,
vivem, sonham, amam, sofrem e trabalham como em qualquer parte do mundo.